Tenho no momento me preparado para a minha nova empreitada: uma montagem de Nelson Rodrigues. Um monólogo. A Valsa nº6.
Sei que não vai ser fácil, uma montagem é um processo de três a quatro meses de trabalho diário, muitíssimo prazeroso quando feito em grupo. Quando o processo é individual, é claro que não deixa de ser prazeroso, mas há que se ter uma disciplina militar e um lidar mais sozinho com as emoções que estão por vir. E em se tratando de Nelson, que emoções!
O que muito me espanta é o preconceito que ainda ronda Nelson Rodrigues. Um autor que criou personagens obsessivos, sim, sempre no limiar da existência, exagerados por natureza, muitas vezes mórbidos, prestes a implodir. Era através desse exagero, dessa quase caricatura humana que Nelson expunha os sentimentos que tentamos desesperadamente esconder.
Assim Nelson deu vida a Olegário, o marido obsessivamente ciumento, confinado a uma cadeira de rodas, que suborna pessoas para lhe relatarem os passos da sua mulher Lídia, por não conseguir acreditar que ela lhe é fiel. E após passar a vida a atormentar Lídia, quando finalmente ele se convence de sua fidelidade, eis que Olegário encontra um bilhete deixado por Lídia, onde ela declara que acabara de fugir com o motorista. Nesse momento, Olegário levanta da sua cadeira de rodas, revelando que nunca fora doente. Ou melhor, que era mais doente que todos imaginávamos.
O paroxismo humano até o patológico.
Assim Nelson nos presenteou com Dorotéia, uma mulher estonteante, nascida numa família de mulheres feias, e por isso atormentada por um complexo de culpa que acaba por destruí-la.
E assim fez solteironas puritanas, bonitinhas ordinárias, médicos incestuosos, cafetinas, maridos traídos, abortandeiras e por aí vai.
Nelson com sua ironia mordaz mostrou-nos nada menos que a devastação dos relacionamentos humanos em sua verdade nua, mas não crua. Sua obra é temperada com poesia, diálogos inquietantes, situações inusitadas, humor refinado e sentimento aos jorrões. Sem, contudo, deixar de despir a sociedade corrompida em que vivemos.
Nua sim, mas cru é o fato de chegar em casa, ligar a tv e assistir as notícias do dia, depois de ter visto a novela das sete.